sexta-feira, 20 de julho de 2007

“faixa bônus”

Nesta seção você vai encontrar, sempre

uma novidade. A de hoje é a beleza

deste “poema gráfico”


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C A B R U U U M M M

(graphic novel)
texto: Ricardo Maravilhas desenhos: Carlos Zürck Cruz

quinta-feira, 19 de julho de 2007


VAN GOGH - "Pedras com carvalho"

"Prefiro os gatos aos cães,

porque não há gatos policiais."

Jean Cocteau



P R E M I A D A S

Brigamos os cães ladram à nossa passagem os cães (dentro e fora da gente) nos querem separar essa música distante e esse ar quente (ar das nossas bocas tuas bocas) são coisas de verão (como a chuva) de infância somos crianças banho tomado cheiro de sabonete no corpo comendo pão no escuro no escuro a gente se toca somos adultos adultos nascemos todos nascemos no verão no outono fazemo-nos em pedaços (de miolo-de-pão) e cada migalha brota na primavera os cães não ladram na primavera (amam) mas a música (da brisa) longe toca ainda ainda te tocarei (1979)

À noite pelas ruas, como um prolongamento inverso de minha sombra, rastejo colado ao solo sobre os paralelepípedos as poças a grama Na frente ao lado atrás nunca dentro de mim mesmo Minhas pernas meu coração andarilhos e minha alma enterrada aos teus pés nessa terra-queimada que você revolve com os dedos ama A memória ondeia não tão absoluta quanto o mar: você minha infância neolítica e suas pedras multicor-multiformes suas conchas xícara de porcelana chinesa seu prato de sopa poético não falo da poética social... Falo dos conjuntos de pequenos círculos de óleo amarelo boiando dos pedacinhos moles de macarrão e salsa dessa água colorida grossa e doce onde bebes teus próprios lábios Tua alma um prato de sopa. (1982)

, a vida goteja-me nos olhos enchendo-os de sol ao meio dia de vida tão pequena enchendo a sala agarrando-se-me aos dedos adivinhando o vermelho que escorre quadro na parede pressentindo o drapejamento de nossos vestidos esvoaçando borboleta pela casa cegando-nos com o pó colorido de vôo (e)terno e contundente Pomba pousada numa estátua um livro de poesias vida Nem incenso mirra nem reis Como é universal um recém-nascido

"E vendo elles a estrella, alegraram-se muito com grande alegria" Matheus 2:10

(1988)

nesta sala sentado e nu estou nesta sala igual a tantas deste planeta e única porque é meu paraíso (eu pecador...) nesta sala com seu móvel antigo de sólida beleza barroca negra e a ausência do gato negro que se confundia com o pesado móvel nesta sala única porque é meu paraíso caminha Cinda flutuando com seu vestido florido solto sobre a carne e a alma nesta sala onde os abacates amadurecem silenciosamente verdes aguardamos a expulsão. (1989)

A N T O L O G I A

A. WARHOL - revisitado

FOGO – FÁTUO ( 1976 ) CENÁRIO POP - ESTÉTICA HIPPIE

( LIVRO NUNCA PUBLICADO )


CARLOS ZÜRCK - auto-retrato (1974)

DA SÉRIE: "CÉU NEGRO SANGRANDO" (peça poética [neo neo realista] em V I atos)

I ato

"... um cachorro-quente e uma coca-cola por favor!" (no ar o cheiro acre de "espoleta num natal infantil")

na minha frente um brotinho decorava uma "brotinho" com que mestria manipulava os molhos o frasco como um pulso num impulso suicida jorrava o catchup com seu gosto vermelho de sangue a mostarda ejaculada surreal prolongamento do frasco amarelo

eu a olhava o cheiro de "espoleta" no ar e o mendigo ("... doido coitado!") provocando comentários um menino-menor-abandonado esmola um pastel duvido que alguém engula com um menino-menor-abandonado (por perto) esmolando um pastel

e o brotinho ali num corta mastiga ... tiga ... tiga corta mastiga ... tiga ... tiga interminável

olhando os enormes ventiladores (que nunca ventilam) cagados de mosca

o brotinho mastigando paciência

olhava-a cabelos escorridos olhos grandes (agora vagando) boca (ruminando) pescoço esguio seus seios eu a imaginava nua comendo pizza-brotinho o mendigo tomando caldo-de-cana o menino-menor-abandonado esmolando um pastel o brotinho sereno como um boi (vaca) ruminando uma “brotinho” e eu...

e eu? mordi com força meu cachorro-quente (já meio frio) um gato entre minhas pernas esperava que eu desistisse do cachorro

(fim do I ato)

II ato agora aqui estou bolo alimentar de dragão mecânico (de homens que o criaram) dragão mecânico se arrasta pela artéria esclerosada do trânsito carioca

B R A S I L país - avenida (não confunda)

dragão mecânico devorando vomitando operários lavadeiras crianças artistas velhos putas defecando monóxido de carbono

R A M O S o dragão cospe na calçada a banhista com cara de dançarina da Broadway da praça Mauá

a falta de espaço no estômago do dragão obriga homens e mulheres a esfregarem-se masturbarem-se acasalarem-se (nunca um acasalamento normal) a fêmea calada a volumosa presença do macho espremida machucando volumosa a jovem pudica pudica madona goza apenas em medir (com os olhos) os volumes

gente árvores bichos (correm de costas) lá fora

a morte embosca sob a passarela acidente(?) suicídio(?) imprudência(?) sangue no canto da boca olhar sem imagem lama na cara nas mãos todo corpo lama sempre morte miserável monstro mecânico pela terra pelas pedras placas passam viadutos buracos barracos (semeados às margens)

vende-se este barraco tratar aqui

rio Meriti (rio?) garotos banham-se e protestam (em vão) contra a discriminação racial (o rio é negro) fazem fazes e meinha às margens (o rio fede) e o esperma branco escorre fecundando o rio (em vão) as fábricas também ejaculam (seu maldito/mal visto esperma/espuma) na boca do rio magnatas contorcem-se convulsos no orgasmo o rio violado estuprado calado morre calado agora sou eu cuspido à margem e também cuspo um mosquito que me entrou na boca que talvez cuspa uma gota de sangue amargo-envenenado da minha língua (meu idioma) "mas que diabos vim fazer ao fim do mundo?" "lutar por um bom emprego" (responde em coro meus glóbulos cerebrais) minha alma se deixa levar vestem-na com uma túnica encardida deixa-se enforcar não vale mais nada

(fim do II ato)

III ato da janela do ônibus (distante) observo (através da moldura) um quadro estarrecedor fétido real um quadro que apodrece (entre latas de cerveja amassadas pontas de cigarros cascas de ovos de laranjas moscas-varejeiras (Cochliomya macellaria) vermes urubus famélicos)

homem mulheres crianças velhos

sub-homens(?) sub-seres(?) vivem comem do lixo

deste parco lixo que a cidade rejeita é que tiram sua colheita

neste podre lixo que a cidade despreza é que as mulheres estão parindo seus filhos este pobre lixo que a cidade... é sua cidade

sub-raça(?) que os jeans as camisas importadas desconhecem sub-raça(?) que os que estão dentro dos jeans e das camisas importadas desconhecem sub-raça(?) que disputa (à tapa) restos de bife (estragado) com os famélicos urubus

marginais homens urubuhomens

pobre animal qual é o teu mal? ser marginal pobre urubu qual é o teu mal? ser animal qual é o teu mal animal? ser pobre-marginal

(fim do III ato)

IV ato

o homem à janela resignado olha o horizonte aprisiona uma mosca com a mão espera esperança

trem ônibus barraco escritórios apartamentos janelas (no 10º não-sei-quanto andar)

olhos no horizonte espera esperança tem o homem à janela a menor poeira que levanta levanta o homem sua cara se enche de sorriso e rugas das velhas árvores das folhas de couve bolinhas de vidro colorido das árvores-de-natal seus olhos o homem tem esperanças à janela olha o horizonte e e espera aquela poeira ao longe enche-lhe os olhos a alma esquece a amada a masturbação as revistas pornográficas os lusíadas o cheiro de mulher (nos dedos) o homem olhos no horizonte espera tem esperanças à janela cada vez maior a poeira escorre verde no céu o bêbado caído (de bruços) na esquina não vê nem a cidade oca cada vez maior a esperança clara contra o céu negro ]sangrando apunhalado pelas torres elétricas pelas antenas nos edifícios (inúteis) poeira de esperança crescente no céu o homem olha e espera há esperança no horizonte vê-se da janela

dos trens dos aviões dos puteiros beira de mangue (nos 10º sei-lá-quanto andar)

este homemtodos crucifixado no horizonte espera poeira de esperança que vem como(nas noites de junho) as estrelas pintadas a cal aqui na teia a aranha estrebucha se extinguem as noites de são joão o cal as estrelas a poeira passa brincava (apenas) o vento e o abutre come-lhe a esperança (como a Prometeu o fígado) amanhã nascerá outra o homemhomens

(teria chorado?) senta-se assoa o nariz com a mão (jogando a coriza ao chão)

recorda-se das mulheres dos sonhos eróticos das poluções (pele colada ao pijama) do corpo/alma que tem atrás dos óculos de sol dentro do nó de gravata mergulhado na xícara de café pendurada em cabides no guarda-roupas uma poeira (ao menos) uma poeira de esperança virá olho comprido no horizonte espera(m) o(s) homem(s) à janela

(fim do IV ato)

V ato

no fundo do quintal não ladrou quando jogaram-lhe terra em cima afinal calmo domado "... enforcou-se na própria coleira!" sofreu olhos e testículos negros vazios de vida pernas abertas (nem se vê o pênis) mandíbula cerrada mordendo ainda (n)os dentes (sangue coagulado) fortes recurvados enormes "... quase mataram o bombeiro coitado!"

pêlo branco negro todo cinza cinza azul azul negro
aparência lupina gigante (feroz) atento

ali deitado (agora) tão pequeno barriga inchada boca seca agonia e morte morreu (como certos homens) estrangulado pela fuga fugia dos fogos da festa (como certos homens) desconhecia temia forca na fuga ou bala na testa optou pelo mais digno no fundo do quintal não ladrou quando jogaram-lhe terra em cima

(fim do V ato)

VI ato

De repente No meio de uma tarde Chuvachorosa Você recebe visitas Marcadas Desmarcadas Ex- marcadas Amigos Ex- amigos Desamigos (nunca inimigos) De repente No meio da tarde Chorachuvosa Você volta ao passado (volta?)

De manhã na feira Comprou tudo De manhã na feira de novo Compra-se Tudo para o Natal Novas coisas velhas novo feliz natal do ano passado novo feliz ano novo passado

Você continua chovendo e as pobres mulheres e crianças e velhos pobres remexendo folhas de alface e tomates podres na feira (você comprando tudo novo - de novo - para o natal) você sem alma (em decomposição) e as mulheres e crianças e velhos pisando na lama catando pontas de cigarros que escaparam das poças no centro da cidade Mendigos espalhados pelas calçadas Loucos semeados pelas esquinas Bêbados vomitando nas escadas das igrejas (o vômito descendo a escadaria ) Você saltando as poças como um veadinho salta numa floresta africana (sem essas calças e essa camisa e essas cuecas e essas botas - Blues Suede... - e essas meias ) e o vômito tira- gosto e cachaça te repugnando e os banheiros imundos te causando náuseas mas continuas te esfregando nas bundas dentro dos ônibus

de repente tardemeia chuvachorosa você recebe visitas amigo desmarcado ex- amigo (nunca inimigo)

as poças refletem a cidade molhada de chuva caminhas entre a multidão (molhada de medo) epreitas com os olhos molhados

as lojas estão enfeitadas Papais Noel verdes amarelos azuis brancos vermelhos negros furta-cores Assustam as crianças Os pais (febrilmente) fazem compras

Um cego não vê o movimento formigante sopra em seu saxofone (a presença do instrumento já é música) olhando o negro de suas pálpebras

todos são suspeitos faltam dias para o natal marginais não podem ficar a solta e prende-se pais de família ladrões não podem ficar a solta prende-se as putas podem e os que estão soltos vão trepar é natal

“...não escutas o replicar dos sinos (de plástico) ? É natal homem vamos encher a cara vamos chegar tarde em casa vamos comer pra cacete e jogar papel higiênico pelas janelas vamos dar presentes vamos dar porrada vamos assassinar passageiros de ônibus vamos comer as secretárias vamos distribuir vinho entre os empregadoa eles ficarão contentes”

Ano que vem mesmo salário Inflação mais trabalho avareza O patrão comprando iate trabalha trabalha Casa de campo trabalha Carro do ano trabalha trabalha você é pago para isso Feliz natal!

(fim do VI ato)

PANO RÁPIDO


ANTONI TÀPIES - "Nu"

DA SÉRIE: "PELE DE PAPEL" (por ocasião dos 30 anos do criminoso lançamento da bomba A sobre Hiroshima)

Ao nascer o sol era generoso gigantesca bola amarela de um fogo trêmulo flutuando sobre o mar (ainda negro da noite agonizante) tremeluzindo contorcendo-se ao calor Nuvens passando ensangüentadas,

"... não é o mesmo sol que agora vemos quero o sol da fotografia!"

O plutônio aspirado mata (provoca câncer) câncer essa busca do passado pela beleza que brotava entre as montanhas

"... meu pai minha mãe" "agora vegetamos semi-mortos (semi-vivos) oprimidos nem animais nem plantas..."

seus pais morreram lá (uns na hora outros lentamente o câncer mata lentamente continua matando)

"... a beleza que povoava este lugar (ainda se percebe) nos grãos de areia nas pedras a água véu de gaze até as montanhas desenhadas em azul no céu azul azul" "as árvores a cachoeira brotando da floresta escorrendo entre plantas"

"tudo ali está morto as pedras a areia" (impregnada de partículas energéticas radiação morte a quinhentos quilômetros)

”os pescadores no arrastão a lua as crianças os peixes (ainda vivos refletindo feito faca) as crianças bolinando os peixes crianças as casinhas caiadas os telhados vermelhos”

(vagina aberta na areia branca os pêlos verdes) O césio, o estrôncio, igualmente venenosos (alguns minutos bastam para contrair-se um câncer) ”Repentinamente incêndio, pânico e correria, ignorância do perigo, os peixes, as crianças, as feridas, o inspirar e morrer, a pele (de papel) rasgando” o metal fundido a liberação total da radioatividade os pêlos verdes as vaginas a areia o césio o estrôncio ”a garganta (como se) aberta à navalha” agonia morte silêncio mudo e expectante os cadáveres apodrecendo, as árvores os peixes o mar o ar apodrecendo "... todos ignoravam o perigo (covardia!) ninguém sabia o que fazer..."

"... meu pai minha mãe as fotografias na parede"


PICASSO - "Scene Bachique au Minotaure"

DA SÉRIE: "AOS QUE VAGAM"

I gigantesco cadáver oco morto no meio da noite (assassinato?)

MAN 8 de julho de 1978, 20 horas Aterro do Flamengo

II na rua dois homens brigam por causa de seus automóveis em casa seus filhos julgam que eles levam a vida à sério

III poeta caminha descalço pisando folhas trilhando a escolha pisando em falso fala ao eco mastigando fel mordendo a fé engolindo em seco poeta

DA SÉRIE: "CHEIRO DE SABONETE NO CORPO"

I menino tive um amigo um lixeiro que me dava revistas de histórias-em-quadrinhos achadas em latas de lixo cheiravam a tomate azedo laranja estragada lixo ainda assim apaixonei-me pela Diana nas tardes abafadas de verão entrava solitário na casa abandonada para roubar goiabas casa velha cheirava a cedro podre e tinha muitos gatos encontrei uma tarde um gatinho morto em decomposição cheio de vermes e aquele cheiro de carne putrefata ainda assim eu comi as goiabas maduras no quintal da velha casa mas férias (depois do almoço) fazia uma pipa bambu linha papel fino (que embalava o papel higiênico) e dava-a ao meu irmão a pipa nunca voava ainda assim as continuei fazendo colando o papel com arroz e dando-as ao meu irmão (pequeninho) cresceu barba na minha cara meu pênis cresceu ejaculei sonhando masturbei-me ainda assim continuo menino

II

que adiantaria a vida a escorrer-me ( da ferida aberta a gilete em meu pulso) purpúrea entre os dedos removeriam o cadáver e minha vida empoçada lavada / levada com / pela sabão-em-pó (barato) e água

mas no dia em que o esgoto encontrasse o mar minha morte teria um sentido

III

automóveis e ônibus (prepotentes) mergulham na imensidão da avenida enquanto gigantesca bola de fogo (Great Ball of Fire*) flutua no céu (os homens pré-ocupados em brigar não viram)

um cão olha o Cristo entalhado na madeira, crucifixado novamente

os reflexos de aço (como navalhas) feriram a bola de fogo que chocando-se violentamente contra as vidraças e esquadrias-de-alumínio sangrou sobre automóveis e ônibus sobre os edifícios (os homens pré-ocupados em brigar não viram) apenas o cão, fugiu do entalhe assustado respingado de sangue um girassol que brotava (em protesto) da rachadura de uma parede do prédio em construção giragirava

o sol não era mais poesia na(s) grande(s) cidade(s)

*"Vamos ver quem será o filho da puta que supera isto!" (J. L. Lewis)

IV

tua cara

na minha cabeça tua cara

uma aflição (no meu cérebro) enfio a cara no travesseiro teu olhar vivo pousa e passeia meu corpo

espanto a mosca teu olhar não quer voar

subitamente Praia Brava calor mar rio areia gigantesca

tua(s) boca(s) vermelha(s) e entreaberta(s) na minha boca teu gosto e meu desgosto misturam-se ao suor o calor o corpo queimado (de sol) o sol os pêlos tua boca aflita enfio a cara no travesseiro

teu olhar vivo pousa mosca

no meu corpo

mexe em meu corpo

(lua)

adormecido lava escorrendo pelo teu corpo

na areia molhada

teu olhar mosca

pousada

no meu corpo

(morto

talvez)

ausente fogo ausente

V

n'algum canto do meu cérebro (entre o capim) um grilo cricrila o teu nome

n'alguma praia cavalgas (em pêlo) nua (em pêlo) e o pêlo do cavalo confunde-se com o teu tufo-vulcânico de negros pêlos o cavalo parece sair de ti (uma centauro?)

à tardinha vi o ocaso dividido em dois mil (nas vidraças dos edifícios, em cada janela um pôr-do-sol) preferia vê-lo divididos em dois o grilo continua cricrilando em minha cabeça e nossas cabeças separadas

teu cavalo nem se percebe tão negra é a noite


CLARICE VAZ (9 anos) - 1993
UM "COXO" NA VIDA - 1979 FORMATO CORDEL

QUANDO AMOR

e quando o amor vier no meio da madrugada, vou te contar um segredo: "só tenho medo, não tenho nada..." e quando teu corpo eu vir esculpido em luar, vou beijar teus seios, só tenho meios, não tenho mágicas. e quando os corpos suados flutuarem cansados no escuro silêncio, vou te beijar a boca, só tenho boca, não tenho palavras. e quando chegar a manhã e o sol sujar o céu de sangue, vou te deixar na lua, só tenho as ruas, não tenho casa. mas quando novamente sentir o peito preso naquele nó, vou me deitar no vento e num momento estou de volta.

V E R B O P I N T A R

À tarde, abri os olhos e dei de olhos com a tarde calma, cálida, me deu vontade de pintar. Algo azul, um pouco vermelho, talvez mais lilás, de amarelo um não-sei-o-quê, mas que esta cromia exprima você. Tua boca... Vou pintá-la como uma rosa, negra. Vou entrar no quadro, vou beijá-la. Mas não sei retratar, nem pintar afrescos, nem refrescos. Só pinto angústias no céu, no sol. O sete... Só sei pintar o sestro!

C A V A L O

Meu cavalo de fogo há de vir (amo-o) dó eu sei montá-lo. Quando o cavalo de fogo descer dos céus hei de montá-lo como outrora os poderosos soberanos montavam seus corcéis e partiam para as batalhas. Não irei a guerra alguma, ao contrário, vou conduzi-lo pelos lugares mais lindos, entre os cactos, na areia, beirando a praia, pelo caminho entre a floresta vou esporeá-lo para que corra mais e mais... Com ele ir de encontro a mais alta montanha do mundo e nela subir. Subiremos...

Quando a seu topo chegarmos, e o vento de tão forte apagar o cavalo, ficarei só... Lançar-me-ei ao espaço, não chegarei jamais ao chão. Ficarei flutuando, flutuando ficarei feliz.

R U A

Na minha tenra idade, quando olhei a rua, rua era terra que enchia os olhos. Cheirava a terra, tinha gosto de terra. Apalpei, degustei, farejei, fui terra. Depois revolveram - na, araram-na, semearam-na. Sementes de pedra, brotaram belas pedras: paralelepípedos, (locução difícil para explicar beleza tão simples...) Corría, caía, jogava bola, rebentava os dedos de encontro a essas pedras que aplainei, moldei com carinho de artífice anos e anos... E quando já às conhecia todas. Quando cada greta, cada sulco, cada fissura era de mim íntima, parte de mim, vestiram a rua de negro!

... JÁ TEM TEMPO!

São Cristovão tinha um jardim que era como um cartão postal, já não é tão tenro, tão viçoso, nem tão... Em São Cristovão eu corria sujo pelas ruas sujas, com o joelho ralado e o coração alegre, mas isto já tem tempo. São Cristovão tinha um colégio com antigos modos de ensinar, já não é tão sereno, tão arcaico, nem tão... Em São Cristovão eu brincava brigando com o mocinho com arma na mão e tiros de boca, mas isto já tem tempo. São Cristovão hoje é um contraste com o santo nome que tem, não é tão alto, tão forte, nem tão... São Cristóvão me ajudou a atravessar o rio, mas não me ensinou como era o outro lado, e estou aqui já tem tempo.

CLARICE VAZ, 12 anos - Cattaleya Hibrida (1996)

ESTHER ALVES - (5 anos - 1986)

as palavras ardem dentro de mim mas já não me queimam (são chama débil) qualquer tentativa de reacendê-las por completo é infrutífera mas o fruto verdadeiro amadurece lá em casa não como os abacates e seu silêncio verde amadurece com um sorriso (aceso na luz do dia) nos lábios e com uma ferrenha vontade de vida (morde a vida e meus dedos e meus joelhos) minha filha esta poesia / processo (como queria Samaral) que corre ri mija chora e dorme com seus macacos coelhos bonecas e sonhos uma poesia para o futuro um poema que talvez não veja concluído mas que se inicia e se conclui em si mesmo que paixões despertará este poema vivo? que poesia despertará? a mim basta o que hoje desperta: as palavras que ardem dentro de mim fora de mim arde sua presença ESTHER

10 DE NOVEMBRO DE 1980

assim que me deito e apago a luz a penumbra inunda de saudade meu quarto saudade essa penumbra que molha a alma falamos tanto e não dissemos um quarto do que foi dito lá fora naquela doce penumbra leve com gosto de ameixa cheiro de flor e chuva Mas quero é falar da saudade da saudade úmida e morna que sinto agora e da ansiedade de deitar-me a teu lado num quarto também molhado de penumbra doce igual a esta e observar teu corpo de algodão e pêssego tua alma e essa estrela que cintila em tua testa e observar (acima de tudo) teus olhos (negros) respingando luz na minha boca pretendo beber dessa luz te entender e amar na penumbra doce e no silêncio no silêncio

esquecer-se do cheiro dos domingos, das manhãs no hálito dos bois morrer esquecer-se do corpo molhado no rio da agonia das horas no carro-de-bois das gotas eternizadas pelo inverno nos galhos secos morrer esquecer-se do gosto das maçãs e do vinho de maçãs das sardinhas no braseiro da broa - de - milho do efêmero prazer do vinho e das paixões morrer esquecer-se menino e os bois continuarão a ruminar manhãs para o poeta Zé Maria Vaz

A N O S 2 0 0 0

I

Diante de ti,

a mim ocorre o que ignoro:

que gesto anônimo

(pleno de verdade,

como se de Volpi fora),

concebeu rigoroso e sensual desenho,

onde minhas retinas cansadas

(como as de Drumond)

advinham fragmentos do querer

em tua lúdica geometria lasciva,

lúbrica?

Que mãos luxuriosas

tornearam tua carne:

sinuosas imagens do desejo,

que percebo quelóide em tua pele

de pedra e saibro?

II

Como um Fado às avessas,

ouço o murmúrio de tuas entranhas

inventando e

reinventando o tempo.

Ouço das paredes

(agora, à distância, tão lindas)

complexos cromatismos,

tecidos na anatomia da argamassa

(óleo de baleia e pedra).

De sombra e luz,

o cromatismo do tempo

em prosaica lida.

Resquícios de vida nos teus desvãos.

Arquitetura do tempo.

Diante de ti,

a mim ocorre o que ignoro.

“(...) aquele que constrói

tem mais honra do que a casa.”

Hebreus 3:3