sábado, 22 de novembro de 2008




PAisagem [Q] pósTumA

, riscando um arco no céu,
pássaros sarcásticos
ofereciam uma revoada como um afago,
uma oferenda;
ao longe uma fileira de casinhas
de um branco fútil,
feriam a paisagem;
um gato cínico e azul
velava, apaixonado,
a entrada do pequeno jardim
e suas pedras
e suas flores desconfortáveis,
e seus antúrios de sexta-feira,
onde também florescia audacioso um girassol.
A luminosidade ocre e obscena daquela tarde
desfalecia num pequeno lago natural
onde peixes nadavam seus vermelhos obstinados.
Um Deus maroto
(provavelmente),
desde tempos remotos,
apontando os céus na cordilheira aguçada
distante, distante.


Aquela saudade desajeitada, futura,
(bem como a imensidão metálica e inútil do mar),
para sempre, habitando a memória do menino audaz.





CANÇÃO (IN)CONFORMADA
PARA IGNORAR AS CHUVAS


, um bate-papo, um dueto,
eu e você: um aqui outro lá
(encontro),
Um diante do outro: pas de deux,
dançando na rua,
sobre a geometria úmida e rigorosa
do calçamento, na chuva,
(ou com lobos, ou com leões).


A cidade, ao longe, na cerração, bela.
(ainda lá está o lampião inútil )
Eu e minhas imensas asas negras,
olhando à direita na amurada,
observo nada.


É verdade, confesso,
domestiquei - o numa pintura
(quase um Magritte),
Ele entre grandes bocejos,
contra o céu ocre, indiferente.
Seu felino despudor e impiedade,
domados pela precocidade
serena do outono,
sabem da diferença entre
o perene e o bolor.
Desta realidade
extraio esta arte consentida,
na penumbra construindo
esta história em branco e preto.
e nesta permanência imperativa
o que não é transe é negação,
Som, vinho e palavras, palavras, vinho e som.
Assim atravessamos dançando
o deserto desta tarde/noite
onde viver é como
arquitetar um homicídio.


Nos bemóis deste outono,
antes tardo que eunuco.







SOB A APROVAÇÃO DA RUÍNA



, apesar da parede verde
da sala de jantar da casa do meu avô,
não há esperança,
o carrilhão queima-nos as horas
com aquela franqueza petulante
dos carrilhões e seus sinos estridentes
seus ponteiros pontiagudos
que te fazem sangrar.

Fechei os olhos, lá está:
um menino descalço
caminhando na praia.
Aquela renda líquida devorando-lhe os pés
e apagando-lhe as pegadas,
não devia ser justamente o contrário?
Ou é como deve ser a caligrafia de Deus
(... se é o que dizem,
duvido – da caligrafia, não de Deus)

Ao longe uma única vela branca.
Branca e solitária
naquela imensidão turquesa sem sentido do mar.
Bem, isso é tudo.

“Tira esse pé da parede menino.”
E a sola do sapato carimbada na parede
da varanda era como fazer poesia
de uma forma muito serena,
mas muito assustadora,
mais tarde perceberia.

“... você vai fazer quinze anos, já é um homem!”
Mas preciso dessa parede,
necessito dessas marcas.
Era como fazer poesia
de uma forma muito assustadora,
mas muito serena,
mais tarde perceberia.

O avô em seu quarto
como que sentado à sombra
das asas de um Serafim,
olhos tricotando o ar,
Saint-Saëns na vitrola,
(Dança Macabra)
o som e as notas úmidas contra a vidraça:
“... morrer é muito fácil para quem dança
ao som de Saint-Saëns, percebes?”

Em sua face não há tristeza
apenas o que já havia esquecido:
a parede da varanda,
o carrilhão da sala de jantar,
duas rosas, postais cheios de palavras
e um copo de vinho
(o silêncio encheu o copo).
Bem finalmente o silêncio.

O que eu estava dizendo mesmo?

Ora, isto não tem nenhuma importância,
não quando se vive sob a aprovação da ruína.

“A única maneira de se livrar de
um dragão é ter o seu próprio.”
Eugene Schwartz






EQZMS

, o anil malévolo
vendia-se (em pequenas quantidades)
no grande magazine inglês,
e a menina (com seus cachos loiros) o havia comprado
e saíra feliz sob a chuva fininha,
pensando no sal, branco e alegre do sol nas ruas,
que continha sua própria existência cotidiana,
cotidiana,
cotidiana.
(mas ela não sabia disso, nunca saberia)
Guarda-chuvas recém-abertos cantavam em uníssono
“Walking In The Rain”...
(“Feels like I'm walking in the rain
I find myself trying to wash away the pain
'Cause I need you to give me some shelter
'Cause I'm fading away
And baby, I'm walking in the rain”)
... (em ritmo de samba)
tamborilando no teto dos carros estacionados
(ao correr da calçada)
e o som que se ouvia era (A) amarelo,
(B) vermelho,
(C) verde,
(D) etc.
e causava nobres sensações (e delírios, talvez)
nas senhoras burguesas que passavam,
mas nas sensações nobres, jazia sempre
o sangue fresco das palavras rubras nunca ditas.
Também é verdade que os grandes pés invisíveis
do cadáver roíam, a céu aberto, o jornal que os cobria,
bem na foto do jogador de futebol,
mas ninguém ligava,
chovia...
Nesta tarde
pedras, flores, gatos (ou vice-versa), pobres e impertinentes,
conduziriam a estranha e surpreendente "alquimia" das frutas.
“Alquimia”, essa doença crônica da pele das frutas.

“As solas dos sapatos / limpas / De andar na chuva”
Jack Kerouac