terça-feira, 31 de agosto de 2010


A FLOR BRANCA DO AÇÚCAR



(a Roy Lichtenstein)

Leio Mandrake e Lothar.
Leio Fantasma,
me faz bem essa simplicidade deliciosa
do vulgar, do instante,
do nada.
Barba por fazer ,
só e suado
cheguei da rua
(Hancock e sua Cantaloupe Island me acompanham agora)
sinto o corpo a desistir
nada comi hoje.
Café, cigarros e
alguma bebida, apenas.

Agora
(de olhos fechados)
a recordar sorrisos e olhos, verdes,
que se desfazem na sombra,
passageiro da flor do AÇÚCar, serENA: AÇUCENA.
Desejando papoulas,
ou outra flor qualquer,
(flor do sêmem do enforcado, por exemplo,
colhida na noite de lua cheia,
arrancada à terra pelo cão negro,
evitando seu grito humano
demasiadamente humano
e também assassino).

Da fée verte, desejando apenas
suas asas de mandrágora e sangue
e pintar o contorno de seu corpo
(ou),
desenhar
(no desenho um desígnio, abstrato e destrutivo)
à crayon o negro de sua pele clara (ou vice-versa),
o carvão dissoluto dos corpos adormecidos à sombra
do silêncio doloroso da eternidade.
Riscando na ardósia de seu corpo
estas letras
( também verdes )
que hão de desaparecer
no gesto efêmero da carícia.

“Quando acariciei teu dorso
campo de trigo dourado,
minha mão ficou pequena
como a flor de açucena”

Thiago de Mello





CUT - UP


JOVENS
PRESOS
em
seus
receios calabouços
cibernéticos
sem se
dedicarem
a ninguém
por um
minuto

a criar
seus próprios
oásis
solitários



ALGUMAS
PESSOAS
por alguma
alucinação
ótica
acham
que
estão
lidando com
criaturas

nem todas
suficientemente
pessoas




EM UM
momento
na vida
um homem-bomba se vê
capacitado
interiormente para
entender e aceitar
que há
coisas que
só se esclarecem na
explosão,
quando se pergunta:

que faço com
o tempo
que me resta?




TROCA-SE
DE OPINIÃO
não de pele
ou nos consolamos
com os costume
ou os infringimos
se queremos o
nosso próprio

tom e
regra e
amargura




PARA INDIVÍDUOS
CONTAMINADOS
por pensamentos
desérticos
momentos não
faltam para
chorarem desamparados
pôr não suportarem
o extraordinário
de não sermos
nem tão necessários

nem tão
confiáveis quanto
um guarda - chuva


















segunda-feira, 2 de agosto de 2010

foto: Clarice Vaz - Maryland / EUA - 2008



FORASTEIRO DIÁLOGO
ou
LEBRES DA CLARICE NA NOITE
para meu amigo Marcos Tristão

, um uivo extenso e arrastado na noite
limpo o vidro da janela embaçado
pela minha própria respiração
e percebo ao longe esboços da cerca


dissolvidos nesta melodia do vento
cortados pela lâmina do som
restos de frases melódicas fundem-se
a este uivo num som fortuito



o jardim agora soa aos meus ouvidos
de uma outra maneira, mas além dos limites
perceptíveis os sons vão se dissolvendo



diante de minha janela imprescindível
somente os sons sutis do jardim
na noite fria outra vez

domingo, 1 de agosto de 2010



BARROCA PALAVRA

Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.”
Manuel de Barros

, a mim,
bastava-me a palavra pássaro
e sua sombra feita de distância
para que mais leve
(queda-d'água)
se tornasse este desfiladeiro existência
e o transtorno fluido desta canção


Uma palavra mais leve
vitrificada como pena na chuva
a elevar-se ao ouvido
revelando o colóquio escorregadio
das violas de arame da Madeira
a liquidez audível dos desejo
bordados no bronze aceso
dos mais antigos afagos
para abrandar esta fuga invisível
que se dá quando ponho
minha indumentária
amarga de andarilho


a mim,
bastava-me a palavra pássaro






“OH DEUS, ISSO NÃO É A COISA CERTA!”



I
, ainda trajando roupas do dia anterior
no azul do tempo desperto
encontro-me num lugar repousante,
numa luminosa manhã de domingo
(vestida com o frescor da seda dourada)
e tudo parece tão bom e perfumado e eterno
O silêncio das onze - horas ao sol
me deixa preguiçosamente feliz
e a casa como que inalando
o perfume do jardim lá fora
                 e o jardim lá fora sorrindo
                 naquela luz

                                   t

                                   o

                                   d

                                   a

                                                                                 
                                    i    l    u    s    ã    o


de cada uma das minhas
(a) cinzas
(b) e desertas
(c) e repetidas
manhãs de domingo,
mais uma vez recitando meu

“monólogo do tempo
vestido com o frescor da seda amarela
quando tudo parecia tão bom e perfumado e eterno”
II


, presentemente desço à cidade entediado
procurando nas vitrines sorrisos,
afagos nos espelhos cubistas
apesar do domingo
apesar do vaso de beijos coloridos de alvorecer
apesar da criança com sua avó
(“mastiga bem, senão
nada de caramelos depois!”)
almoçando creme aromatizado de cogumelos (a avó)
e espaguete (a criança)
na loja de departamentos do oitavo andar.


Anões do enfado e da cobiça
com suas pernas curtas, montam uma dança
executada com magia
(apesar de tudo)
na cobertura do carrossel
( em torno da praça, outras vezes)
deixo-me estar observando
aquela frenética coreografia
mas “deixar-se estar apenas observando”
é a maneira mais equivocada
de fazer vista-grossa porque
todos por aqui jogam o “jogo do detetive”
e todos são os "assassinos"
                                              te piscando


(não dou a mínima...)

III
, depois de duas taças, já em casa, dizer ao gato:
“Olá querido!”
e ele com seus olhos felinos
e sua delicada natureza noturna
percebendo o tempo
( inexorável )
sutilmente arranjando a ponta
caqui da vestimenta da deslealdade
IV
, mais tarde
o velho Herivelto (“CAMINHEMOS”)
duas (ou três) poesias do Manoel ou
                                          Manuel
                                                      ( de Barros
                                                        ou Bandeira )
palavras cruzadas
quadrinhos
TV
prometo não zangar com Deus, mas
já lá estão as estrelas luxuriantes
o dia se foi
                   nenhuma certeza
                             e a certeza de coisa nenhuma
PARA MIM HOJE
COISA CERTA SÃO NOITES SEM ADEUS


(mas, pensando bem,
isso pode não ser tão ruim)


 


PIANO RUMOR

Para Cazuza e Ezequiel
, a música uma outra cidade submersa,
iluminada por dentro,
excessiva e inesquecível,
embala a dança das deidades agitando o coração
( esse recinto nômade dos órfãos )


Uma atmosfera feita
da amargura e da fantasia,
insanidade e renúncia,
entre lamentos e ruminações,
entre o uivo
e o silencio dos braços e dos violinos


levanta-se (como névoa) a melancolia dos BL[U]EroS
ao sabor da castidade cigana
e das encarnações originais
das ameixas vermelhas de outubro
em nossas camisas.

Em nossas camisas nossa presença
gravada no suor,
nas almas sinistros cânticos,
sons étnicos,
velhas tradições musicais.
Canções dos suicidas
(na testa o hachimaki da perseverança),
dos marujos fugitivos,
dos tuxauas fantasmas,
escritas na tranqüilidade ambígua
dos quartos de albergue.

Canções na desordem da mente,
no redemoinho entre febre e devaneio,
(língua na orelha fria)
breve canções para assassinar seu amante


NO JOGO SOMBRIO DA MORTALIDADE
A AGRADÁVEL CONDIÇÃO HUMANA





ORAGO

ou
São Sebastião do Rio de Janeiro



I
, construindo paixões e vinganças
a arquitetura da cidade pulsa
                       na cidade
oscilando entre o labirinto primordial
e sedutoras manhãs míticas

veleidades tenras e contraditórias
improvisando a realidade
para além do abjeto
e da metamorfose requintada de ângulos e retas
                                                                   (e retas e ângulos
                                                                                    ângulo reto
                                                                               retângulo)

paixão percebida pelos sentidos
gratos pelo embuste
ardil hábil e carnal
que acaricia toda forma de sonho

                     uma mão
                                     uma opinião
                                                          um credo
                     uma maneira de viver
sentimentos
                     lembrança
testemunhos das quatro estações
           (místicas estações)

magos
            duendes
príncipes e princesas
Eros
         veludo lã e lendas
narrativas aderidas à realidade
da parte velha da cidade
centro do reino cultivado

                           a face da cidade
              na minha face



II

A  F AC E
D A C I D
A  D  E  N
A  M   I  N
A     F     A
C  E A FA
R            S
A  D  A  C
I D A D E
M    I    N
H    A     F
A  R  S  A







CHORO PARA ALÉM DO JAZ[Z]IGO



Não quero flores,
nem coroa de espinho
Só quero choro de flauta,
violão e cavaquinho”
(Noel Rosa)
I
, um arco-íris derramando canções
em minha janela
(vestígios do dia)
insondáveis canções diurnas
melancólicas e efêmeras,
apenas um grito num mundo flutuante
(todas as minhas sutis fantasias
nos ombros deste grito)


II
Canto e batuco e batuco e canto no elevador
ritmos para alcançar os azuis dos céus urbanos
por ter um dia acreditado que para lá iria
(“... compro um piano ou faço um fudge?”)


III
Este anjo menino que toca
com seus sacrossantos pés (de anjo)
a terra, pelo prazer de suas texturas,
dança no absurdo encarnado
de archotes e sambas-canção
(embalados nas tempestades de outono)


IV
Também anseio canções assim
que ecoem na carne e sangue e ossos
e ossos e sangue e carne
como um velho at-tabaq aflito
arraigadas na realidade,
na fraquesa humana:
orgulho, vaidade, preguiça, avareza
inveja, raiva, luxúria...
Gosto de canção bonitas
tribais e pantanosas
que me digam coisas terríveis
(notícias más
são sempre mais suportáveis.
em uma boca bonita)
NOS  LIMITES DO  CHÃO,  COMO  ESTE ANJO
MENINO, TAMBÉM ANSEIO CANÇÕES ASSIM







SOB A APROVAÇÃO DA RUÍNA





, apesar da parede verde
da sala de jantar da casa do meu avô,
não há esperança,
o carrilhão queima-nos as horas
com aquela franqueza petulante
dos carrilhões e seus sinos estridentes
seus ponteiros pontiagudos
que te fazem sangrar.

Fechei os olhos, lá está:
um menino descalço
caminhando na praia.
Aquela renda líquida devorando-lhe os pés
e apagando-lhe as pegadas,
não devia ser justamente o contrário?
Ou é como deve ser a caligrafia de Deus
(... se é o que dizem,
duvido – da caligrafia, não de Deus)

Ao longe uma única vela branca.
Branca e solitária
naquela imensidão turquesa sem sentido do mar.
Bem, isso é tudo.


“Tira esse pé da parede menino.”
E a sola do sapato carimbada na parede
da varanda era como fazer poesia
de uma forma muito serena,
mas muito assustadora,
mais tarde perceberia.


“... você vai fazer quinze anos, já é um homem!”
Mas preciso dessa parede,
necessito dessas marcas.
Era como fazer poesia
de uma forma muito assustadora,
mas muito serena,
mais tarde perceberia.

O avô em seu quarto
como que sentado à sombra
das asas de um Serafim,
olhos tricotando o ar,
Saint-Saëns na vitrola,
(Dança Macabra)
o som e as notas úmidas contra a vidraça:
“... morrer é muito fácil para quem dança
ao som de Saint-Saëns, percebes?”

Em sua face não há tristeza
apenas o que já havia esquecido:
a parede da varanda,
o carrilhão da sala de jantar,
duas rosas, postais cheios de palavras
e um copo de vinho
(o silêncio encheu o copo).
Bem finalmente o silêncio.


O que eu estava dizendo mesmo?


Ora, isto não tem nenhuma importância,
não quando se vive sob a aprovação da ruína.


“A única maneira de se livrar de
um dragão é ter o seu próprio.”
Eugene Schwartz