sábado, 9 de julho de 2011



SUÍTE CLARY ICE



Para minha filhinha Clarice
,uma manhã
(e era sábado e era verão e era quase carnaval)
chamou - me como se sempre soubesse meu nome:
“... o que você sentiu quando lhe falavam à janela?”
Não pude acreditar em meus olhos, ela era linda,
branca como uma sálvia florida
coberta de neve atávica e ancestral.
“... não sei até onde irão, mas também não quero saber!
...nunca mais, nunca mais! ... tudo meu, tudo meu!”
Clary Ice é f* !


Quando se vive uma oportunidade,
cada segundo é gota após gota
se esvaindo de um conta-gotas,
isso é o mais perto do viver para ela.
Um dia ela foi embora
- atendendo ao chamado de suas suposições -,
cuidar de suas crianças.
Construindo com elas solfejos e razões de desejos
(ou vive-versa)
que talvez nunca sejam usados.
Mas elas não sabem que
Clary Ice é f* !


Ela vive desse doar-se durante o dia,
a noite, têm apenas a pequena flauta celta,
seus sons agudos e esta parede baixa,
como tema de suas conversas.
Entre uma e outra xícara de chá, cria um mundo de histórias (como aquela de quando o sol de todas as nações ficara cinzento e as torres brancas, zigurates – a despeito de seus movimentos horizontais e verticais e do deus perverso que as manipulava – foram sendo destruídas uma a uma) inspiradas nas janelas do edifício em frente, mas isso só faz aumentar o seu GRITO interno DE desespero por LIBERDADE... Liberdade além desta meia parede.
Clary Ice é f* !


Parte durante o dia no seu barco cereja, à vela,
mas sempre retorna, antes que os ventos
noturnos façam a vela, o barco e a ela mesma de idiotas,
para as promessas de vôo que o sono lhe concede.
E sonha com sujeitos loiros e surdos,
metidos em frágeis ternos de papel craft
- como eu sonhei, e acordei ansioso,
mas você ainda estava ali, deitada ao meu lado,
tua cabeça fazendo pressão sobre meu peito... -
que ela rasga com grande satisfação,
rindo irônica pelo que revela.
Clary Ice é f* !


Mas quando precisou de mim
eu não estava lá esperando por ela
apenas um dia na vida e eu não me encontrava lá
(e já era dezembro, e ela deve ter me procurado ansiosa
com seus grandes olhos de cabra, amarelos e ternos,
enquanto cantava “Happy Xmas (war is over)”
e essa imagem ainda dói em mim quando lembro ...),
isso seria o suficiente...
E quando a amizade perde o valor
tudo se torna negativo,
tudo se torna invisível para a dor,
que vai se ampliando e suas areias
- Ole Lukoeje -
fazem do coração um deserto.
Mas Clary Ice limpou o seu
com as mãos tintas de lealdade.
Clary Ice é f* !


Uma manhã despertou com um som,
um estranho som de tambores (Ng’oma),
kora
e xilofone ( balafon),
um chamado.
“... quem estaria tocando a música desta manhã?”
E a manhã de sol raiando dourada em seu peito
(de menina ainda)
Apenas o desejo troando no coração dessa manhã”, concluiu.
Ela sabe: as coisas não vêm facilmente.
Pôr-se a cantar, vestir-se com rigor,
saltar de pára-quedas
ou se enterrar na cozinha,
como um belo pássaro em uma gaiola
não vai fazê-la melhor do que ninguém,
ela sabe: as coisas não vêm facilmente.
Clary Ice é f* !


Claro, ela vai te questionar:
“... você esqueceu todo o sofrimento,
anos após anos, lá na fábrica ...?
Já esqueceu toda a dor do passado,
e esconde isso do teu único herdeiro?
Isto, em absoluto, irá fazer dele um grande cara,
ao contrário, o futuro não é alcançado
com nenhuma posição zen, chan, dhyana,
ou com aquela mandala em preto e branco
num pôster na parede.
Os desejos continuarão troando
no coração da manhã!”, etc.
Mas ela só quer a tua confiança,
Clary Ice é f* !

E eu continuei a fazer girar,
com um arame, meus carretéis coloridos
pelas ladeiras. E ela ao meu lado
com seus street rollers e os cabelos,
muito negros, ao vento da tarde
( “..., folhas das árvores caem quando estalo os dedos!”
“..., quando soluço, crescem-me as unhas dos pés!” ),
embora com as duas marcas que os caninos
do tempo deixam em nossos pescoços.
Ambos percebemos as pessoas e os relógios
(como a serpente mitológica),
fabricando certezas.
Porém, a música dos lírios lívidos e silenciosos,
macia como o pingar das velas,
nos tornou responsáveis pela paz saudável,
paz que construímos em nossa imaginação.
Uma paz fulgurante,
contas de cristal,
suficientemente grandes para serem vistas
mesmo na doçura das noites mais escuras
(na noite mais escura de uma terça-feira sem lua).
Clary Ice é f* !

Poucos saem vivos deste medo
cinzento de arder de paixão
(medo que de um cardo faz uma coroa - de - espinhos),
num outono público.
Toda a luz daquele sal uivando,
tão conscientemente cinzento,
queima as retinas.
Nós também, protegidos do sal cinzento
que queima nos olhos,
saltamos e não nos arrependemos,
à direita do meu olho, o pombo num vôo retilíneo
(que sigo com o olhar),
a direita do seu pescoço a pequena tatuagem.

Mesmo que passemos do outono ao verão
sem nos vermos, ela pega no telefone,
(ainda que tarde da noite)
me liga, e eu retorno para lá,
sim eu me transporto para o seu lado...
Clary Ice é f* !

*  *  *



UM IDEOGRAMA MANCHADO DE SOL: O PARQUE

para Giully ( plena de juventude
e cabelos castanho escuros, macios e cacheados)

, quando você chegou
e desenhou uma ave e um peixe
naquelas cores só tuas
(e era julho
e pra sempre será),
nosso mundo já era assim
cheio de lugares, coisas coloridas e nomes
como melancia e sol
e imagem e som e movimento e mutação
- e no movimento incessante dos céus
não há o que mude, apenas o mudar,
caráter mesmo do universo -
à nossa volta.
(e você sempre soube:
do nome correto das coisas,
depende a ordem do mundo)
Mas há coisas e pessoas que não curam nossa dor
(não secam nossas lágrimas),
mas você não é uma delas, ao contrário,
você nos trouxe poesia e felicidade
incomensuráveis para este pássaro vermelho
(mas triste)
na gaiola do nosso peito.


Você chegou e o pássaro gostou de você
e teu sim soa "I Ching"
felizmente.



PROGÊNIE DA LINGUAGEM (*)

, coloco minha esperança na água
(neste pequeno “barco”
da linguagem) como se pusesse
uma criança

em um cesto trançado
de folhas de íris,
cujo lado de baixo se impermeabilizou
com piche e betume

e com todo cuidado
colocasse a navegar
(e, em se tratando de linguagem,
navegar - bem como viver - é preciso) entre
os juncos
e os papiros das margens
do rio,

somente para que fosse carregado pra cá e pra lá,
sem se saber onde irá parar...
Talvez no regaço,
de alguma filha de faraó, quem sabe?

 
(*) Uma tradução livre