LOUIS SUTTER
HERMANN HESS
A pintar quadros lindos e perfeitos,
a tocar no violino sonatas sem defeito
e lindas - a Kreutzer, à Primavera –
aprendi, já faz tempo, quando jovem
corria para o mundo aberto e claro:
eu era moço, era louvado e era amado...
Mas certa vez me olhou pela janela,
a rir com a maxila descarnada,
a Morte – e o coração
gelou dentro de mim, gelou em mim
e me gela ainda hoje. Eu escapei,
vaguei de um lado para outro,
mas me pegaram e me puseram fechado
ano após ano. Da minha janela,
por entre as grades, ela me arregala os olhos
e arregalada ri. Me conhece. Ela sabe.
Em papel grosso às vezes pinto homens,
pinto mulheres, pinto Jesus Cristo,
Adão e Eva, o Gólgota,
não perfeitos, não lindos, mas sentidos.
Com tinta e sangue eu pinto, com verdade,
e a verdade é terrível.
Recubro a folha, risca sobre risca,
mais alta, mais grudada, cinza, prata, preta,
e as pontas dos hieróglifos
deixo encresparem-se espalhados feito musgo,
crepitarem como granizo seco, afilarem-se em espinha de peixe,
cinzentos véus, redes de linha fina, teias de aranha,
vento na relva, trança de raízes, caligrafia,
rabisco dez mil linhas em blocos e mais blocos,
lisas inchadas arrepiadas,
em plumas flamejantes, empinadas, esquivas,
poupo aos rabiscos os corpos da neve,
jogo Jesus ao chão
sob o fardo da cruz, voejam pássaros
como espectros num matagal de sonho, flores em flocos
a rir aflitas entre ervas murchas.
Eu às vezes esqueço,
eu às vezes conjuro tanta angústia,
eu às vezes escuto de distantes
anos de sombras, muitos anos, música:
Sonata a Krautzer*... Mas na janela
sei que, nas minhas costas,
riem de mim.
Mas quem me conhece, quem sabe – é Ela.
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*Sonata No.9, para violino: “à Kreutzer”, Beethoven
RITUAIS QUE OS CREPÚSCULOS IGNORAM
, teu corpo, muito próximo, transpira
entre a parede e o abandono,
durante esse intervalo de tempo
conhecido como noite.
Agora, um raio de sol cinza
revela e ilumina pequena
nuvem de poeira em círculos e tremores.
Eu, embriagado pelo licor extravagante
da luxúria (cassis?), danço no mais extremo da noite
(que é quando o sol põe
aquela legenda laranja no céu),
a dança selvagem das circunstâncias.
Um Serafim, coberto de plumas e paetês
(provavelmente)
foi quem arquitetou este jogo
sob este sol frio de outono
que para você não é nunca
antigo nem cinza na cor.
Você sabe que gosto de você.
Você sabe que não sente minha dor
e de como gosto de você,
te disse isto num sonho.
Mas de toda dor, você não sabe,
você não ouviu toda minha dor.
Não tens tua face sobre a minha dor.
Uma velha canção dos Beatles
(“And anytime you feel the pain,…”)
foi o que você ouviu,
e é só o que tenho para ti agora:
os rituais que os crepúsculos ignoram.
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Minhas sincera homenagem!
"Si Khalil ouve esta voz que se ergue na noite. É a voz de um povo que desperta e que cedo vai estrangulá-lo. Cada minuto que passa o separa da sua antiga vida. O futuro está cheio de gritos. O futuro está cheio de revoltas. Como represar este rio transbordante que vai submergir as cidades? Si Khalil imagina a casa desabada sob o pó dos escombros. Vê os livros aparecer por entre os mortos. Pois nem todos serão mortos. É preciso contar com eles, quando se erguerem com os seus rostos sangrentos e os seus olhos de vingança." in "A Casa da Morte Certa"
"Quando Samantar saiu da gruta, o sol levantava-se por cima do mar, fazendo explodir debaixo dos seus raios mágicos todas as cores da paisagem. O verde dos palmeirais, o ocre das extensões arenosas, o azul do mar, apareciam em todo o esplendor da sua frescura primitiva. Era quase um chamamento sensual, uma exortação ao amor que Samantar sentiu com uma indizível felicidade. Então, fez vaguear o olhar maravilhado por toda aquela beleza cintilante debaixo do sol, como uma oferenda àquele que simplesmente quer viver e que a ambição de um homem quase destruíra." in "Uma Ambição no Deserto"
PEQUENA CANÇÃO (sem termo)
A UM CHAMADO “ERNESTO”
Floresceram canções brancas que semeaste com alvaiade
em nossas almas e foste embora, era outubro e outubro é sempre
É o outubro em que eu vivo, dias de tudo e de vaidade
E tu, então, um sorriso na alma e um sonho de flor carente.
É outubro e as cores se renovam, mas há um azul a inventar,
o azul de um grito que nada diz da luta em toda cantiga
nem da flor carente, nem das canções brancas a germinar
apenas diz das pétalas do desejo que tortura e castiga.
Destas pétalas do desejo, de uma só cor - uma cor só delas -
nasce o precipício (que procuras sob o sol ao qual pertences)
e nasce o mundo nu, pleno de justiça e igualdade, que exalas.
Oxalá, o aguaceiros de desejos, sonhos e fortuna que alcances,
- a renovar aspirações de fraternidade que nos corações instalas -
vertam do silencioso mar da morte traiçoeira que afinal vences!
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ORAÇÃO DAS DIVERGÊNCIAS
,se o Profeta Gentileza
seria um bom presidente,
Nunca se saberá...
Mas, seria um bom presidente
o Profeta Gentileza?
Um grande ballet deu “El sombrero de tres picos”
(de Falla)
Mas ao fim, o som, que também traz
a oração das divergências,
se rende ao silêncio,
que flutua na energia destrutiva das escadarias,
como o pó à luz do sol.
O sabão em pó azul também pensa estar colorindo
a capa de chuva de plástico azul
(enquanto cuida de lavá-la),
pensa possuir esse poder de mudança.
Colorir oportunidades, oportunidades de colorir...
E você dando nomes aos bois e as cores, cores e bois,
mas cada um de nós
(tu e eu, em nosso íntimo)
tem todas essas pessoas de cera
para proteger do calor!
Pessoas que
(como nós, eu e tu)
se deterioram se não o fizermos.
A PALAVRA “FODA-SE”
, durante o dia, foi quando o muro desabou
(foi derrubado na verdade, vimos na televisão),
das janelas dos edifícios do mundo um grito.
A liberdade de óculos,
porque míope
( a esperança também, segundo Rodrix),
havia chegado durante aquelas
horas mornas da tarde
(julgamos).
Mas, assim que o muro foi derrubado,
surge a nau dos insensatos
à tosquiar a lã vaga das promessas
daquela velhota de óculos.
Uns tipos surdos e mesquinhos,
Metidos em fardas de papel crépon
(verde oliva)
girando no ar em seus vôos cegos
(insetos em inútil busca de luz),
vôos que fizeram nosso pesadelo naquela noite
e em todas as outras anteriores
por mais de vinte anos.
Por mais de vinte anos,
também, tive minha caneta arrancada das mãos
por alguém que em seguida rabiscou
com ela a palavra “foda-se”
atrás da porta do banheiro público
(onde me encontrava escondido, fumando talvez).
DA EXISTÊNCIA DAS CORES
As cestas do açafrão e seu ocre,
(o ocre das reminiscências);
os eventos religiosos
(minerais e metálicos);
a eletricidade estática das orações;
o carnaval.
O piano nas saletas
penetrando as crianças nuas, nuas
em forma de som;
a dança.
O fio do desejo queimando os pés
dos meninos acrobatas,
ágeis e ilógicos;
aquelas vozes em uníssono
(esculturas de luz, eloqüentes)
e ondas e fulgurações
tingindo de preto o uniforme do jóquei,
e ao branco oferecendo a fatalidade,
não podem ser apenas
porque somos sábios.